Teoria organísmica
Patrícia Valle de Albuquerque Lima
Psicoterapeuta na abordagem gestáltica
Doutoranda em Psicologia – UFRJ
A unidade de referencial adotada inicialmente pelos autores da
Gestalt terapia foi a de organismo.
Este termo organismo foi empregado originalmente devido à adoção
da Teoria Organísmica do neurofisiologista Kurt Goldstein como modelo de
referência teórica para a Gestalt Terapia.
Kurt Goldstein era um adepto da Psicologia da Gestalt e, apoiando-se
sobre a lei de figura e fundo, descrita por esta escola para explicar os
processos de percepção no homem, adota esta noção da percepção como uma
dinâmica na formação de figuras e fundos para buscar um modelo referencial
adequado para tratar da natureza do homem.
A preocupação deste teórico e pesquisador era buscar um modelo holístico
que pudesse explicar as mudanças de personalidade apresentadas por pacientes
que haviam sofrido lesões cerebrais permanentes. Kurt Goldstein não acreditava
na possibilidade de entender estes indivíduos dentro de um ponto de vista que
valorizasse apenas as mudanças no ambiente (dados sócio-culturais ou
geográficos), nem apenas os aspectos meramente físicos de suas doenças (lesões
cerebrais). O que ele verificara é que
a personalidade total destes indivíduos mudava em função das lesões sofridas,
não podendo esta mudança ser entendida apenas como meros reflexos fisicalistas
destas lesões.
Na realidade, ao pesquisarmos a obra de Kurt Goldstein mais
aprofundadamente, podemos notar o quanto os questionamentos deste autor,
relativos à primazia do método experimental nas ciências naturais como o mais
adequado para estudar os fenômenos perceptivos do ser humano, foram
fundamentais para a construção da Teoria da Gestalt terapia. Grande parte das considerações feitas por
Kurt Goldstein em seu livro “The Organism”, publicado na década de 50 e
recentemente reeditado nos Estados Unidos graças ao esforço do
neurofisiologista Oliver Sacks, são transpostas pela Gestalt Terapia para
explicar o processo de auto-regulação organísmica do homem de modo
abrangente. É importante ressaltar que
os estudos efetuados por Kurt Goldstein foram basicamente implementados dentro
da área de pesquisas da neurofisiologia dedicada a acompanhar as mudanças que
ocorriam em pessoas vítimas de seqüelas produzidas por diversos tipos de lesões
cerebrais causadas por ferimentos de guerra.
Kurt Goldstein deixa claro em seu livro que acreditava que estes
estudos, mesmo que voltados para o entendimento dos comportamentos adaptativos
de pacientes lesionados, poderiam ser de grande valia para a compreensão dos
processos de funcionamento adaptativos dos indivíduos de um modo geral, não só
dos ditos “doentes”. Parece que Fritz
Perls realmente acreditou nesta premissa, pois percebemos, claramente, grande
parte dos resultados das observações e da teorização decorrentes destas
efetuadas por Kurt Goldstein, sendo literalmente transcritas e adaptadas para
explicar a visão de homem global da Gestalt Terapia. Os conceitos básicos desta abordagem, já citados acima, apóiam-se
totalmente na visão organísmica de Kurt Goldstein.
Faremos abaixo então uma apresentação das principais premissas
apontadas por Kurt Goldstein neste seu livro inicial, onde o mesmo apresenta os
esboços da teoria organísmica de sua autoria e depois reafirmados em outra obra
sua da década de 60 intitulada “ La Natureza Humana a la Luz de la
Psicopatologia” (1961).
1 - A teoria
organísmica-holística de Kurt Godstein como parâmetro para a construção de uma
teoria da personalidade humana.
O livro “ The Organism” tem como subtítulo no seu original a
seguinte frase – “ A Holistic Approach
to Biology Derived from Pathological Data in Man”. De saída já podemos fazer dois comentários sobre este sub-título
– a evidente preocupação do autor em buscar uma abordagem holística na biologia
e a direta conexão com suas pesquisas na área das patologias
neurofisiológicas. Creio que este
comentário seja extremamente pertinente pois, precisa-se deixar claro que Kurt
Goldstein não propunha a se dedicar ao estudo do comportamento humano do ponto
de vista psicológico e sim biológico,
mesmo que holisticamente compreendendo não ser possível isolar estas áreas de
estudo. Além disso, Kurt Goldstein
também não pretendeu criar leis ou premissas que pudessem ser aplicadas de modo
amplo aos modelos normais de comportamento humano. Seu modelo, mesmo que inovador e crítico em relação ao método
preponderante de estudo nas pesquisas naturais, é ainda um modelo biológico e
voltado para o estudo de fenômenos patológicos. Esta marca se faz presente na Gestalt terapia transparecendo,
muitas vezes, por trás de uma conceituação ainda com traços de um linguajar
fisicalista e de comportamento normal e anormal. Esta é uma contradição na teoria da Gestalt Terapia, que dentro
de uma visão filosófica basicamente fenomenológica e existencial pretendia
abandonar a idéia de normalidade e anormalidade e de funcionamento
biologicamente embasado. Mesmo assim, a
riqueza da teoria organísmica presente na obra de Kurt Goldstein foi
enriquecedora e fundamental para a visão de homem, ainda não muito mudada, na
teoria da abordagem gestáltica.
No prefácio do livro “The Organism” já fica clara a intenção do
autor de propor um novo método para o estudo dos seres vivos, principalmente o
homem. Este método, chamado de
holítistico, propunha-se a entender o organismo como um todo e não como a soma
de partes isoladas. Pelo método
holístico, nenhum tipo de experiência deve ser excluída, ao se estudar os seres
vivos - toda e qualquer forma de experiência é válida para o entendimento
global do funcionamento deste ser.
Quanto à visão de ser humano, contida na teoria holística de Kurt
Goldstein, este defendia que o sentido de “ser” só é possível através da experiência conjunta de existência com
os outros e no mundo. Esta visão
fenomenal trazida pela teoria organísmica de Kurt Goldstein é bastante próxima
ao descrito também por Kurt Lewin na sua Teoria de Campo, sendo uma das
premissas da abordagem gestáltica.
Na introdução deste livro, uma idéia fundamental é apresentada –
a da impossibilidade de se reduzir o entendimento dos comportamentos humanos,
mesmo àqueles aparentemente mais simples, sendo necessário um olhar complexo
para uma correta avaliação. Kurt
Goldstein fazia um alerta de que procedimentos de estudo reducionistas ou
isolacionistas não permitiriam alcançar-se a “essência” (a natureza intrínseca)
do homem.
Quanto a noção de sintoma, a Gestalt terapia tinha o claro
objetivo de construir uma conceituação bastante diversa das teorias
psicopatológicas preponderantes na psicologia, no momento de sua criação. Kurt
Goldstein já defendia que os sintomas deveriam ser encarados como tentativas de
adaptação do organismo, como respostas deste buscando equilibrar-se entre as
demandas do meio e as necessidades prioritárias para o funcionamento do
organismo. Um mesmo distúrbio pode ser
a base de sintomas bastante distintos em indivíduos diferentes ou em momentos
de vida diversos de um mesmo indivíduo.
Não há uma regra clara e simples para descrever sintomas esperados a
partir de um distúrbio diagnosticado. A ressalva que Kurt Goldstein faz é de
que, de um modo geral, quando o organismo é confrontado a executar uma tarefa
que, por qualquer razão, não está habilitado a executá-la, ele apresentará um
comportamento desordenado diante da situação. Goldstein destacava que estas
situações de ser provocado a realizar algo que não tem condições de fazer
geravam, o que podemos chamar, de grande ansiedade no organismo e que os
comportamentos desordenados resultantes são comportamentos desarmônicos, tanto
do ponto de vista do organismo, quanto do meio ambiente. No homem isto levava há um fenômeno descrito
por Goldstein, principalmente nos casos de indivíduos lesionados cerebralmente,
onde o sujeito evitava, de todos os modos possíveis, expor-se às situações onde
fosse necessária a execução de ações que não estivesse apto a executar. Goldstein apontava como uma conseqüência, do
descrito acima, uma tendência destes pacientes em buscar comportamentos
padronizados de ordem, uma tendência em evitar experiências que pudessem gerar
qualquer sensação de vazio, de desordenação.
Fritz Perls amplia esta noção para descrever comportamentos presentes
nos mecanismos neuróticos, onde esta evitação da novidade, de situações
geradoras de sensação de vazio, também se faz notar como uma tentativa
neurótica de padronização de modos de atuação já conhecidos.
A teoria da Gestalt terapia vai compartilhar com a teoria
organísmica de Kurt Goldstein a idéia de que tentativa de repetição de padrões
de comportamentos já conhecidos, a não mudança e não exposição a situações
novas, é uma tentativa dos indivíduos de não lidar com a ansiedade gerada pelo
inesperado. Este mecanismo justifica-se,
no caso de lesões de ordem neurológica, como um mecanismo adaptativo onde o
indivíduo busca não se expor a situações que lhe demandem respostas que não
está apto a manifestar. Já nos ditos
casos de “normalidade”, esta repetição de padrões já conhecidos de
comportamento diz respeito à tentativa de evitação da ansiedade gerada pela
experiência do vazio, da novidade.
Quando há uma cristalização deste padrão a teoria da personalidade da
Gestalt terapia vai entendê-la como um padrão neurótico de comportamento,
padrão este que vai levando ao empobrecimento das experiências do sujeito, a um
repertório repetitivo e limitado de comportamentos que não propiciam a
mudança. Conforme citação de Kurt Goldstein: “ The environment of on organism is
by no means something definite and static but is continuosly forming
commensurably with the development of the organism and its activity.” (p. 85)
Goldstein já trazia o pensamento sistêmico para constituir as
bases da teoria organísmica. Dentro
desta visão, o organismo é compreendido em si como um sistema, que funciona
como uma unidade, sendo que qualquer estímulo que atinja este organismo em
qualquer um dos seus subsistemas, necessariamente promoverá mudanças na unidade
total. Os padrões de resposta
(perfomances) desta unidade são guiados por um objetivo único – a busca de
equilíbrio do sistema global. Kurt
Goldstein já dizia que este modo de funcionamento se dava de forma semelhante à
lei de figura-fundo da Psicologia da Gestalt para explicar os fenômenos perceptivos. Fritz Perls irá ainda mais longe, estendendo
a lei de figura-fundo para todas as áreas de funcionamento do homem. Sendo assim, a emergência de tarefas,
desafios, ou ações necessárias ao bom funcionamento do organismo surgem como
figuras que se destacam como prioridades para o indivíduo. Estes desafios conforme Goldstein, Perls
chamará meramente de necessidades.
Goldstein dizia que estas eram definidas pela “essência” (dotação
natural) do organismo. As mesmas são
atualizadas diante das mudanças trazidas pela relação com o meio circundante,
que está interagindo permanentemente com o organismo total. O equilíbrio acontece quando o organismo
consegue se atualizar através de suas perfomances[i]*,
lidando simultaneamente com as demandas do meio.
Goldstein definia a auto-regulação organísmica como uma forma do
organismo de interagir com o mundo, segundo a qual o organismo pode se
atualizar, respeitando a sua natureza, do melhor modo possível. Este lidar com o meio pode se dar tanto
através de reações de aceitação e adaptação a este, quanto também através de
ações de rejeição e fuga do mesmo.
Quanto à continuidade do sistema é ameaçada pelo contato com o meio, a
retirada do contato é uma tentativa de adaptação do organismo. Esta noção de fuga, de resistência, como
respostas também de equilibração, é claramente levada para o campo conceitual
da Gestalt terapia.
Goldstein trouxe importantes contribuições para as teorias dos
instintos e dos reflexos. Ele destacou
que os reflexos também deveriam ser estudados e explicados dentro de uma visão
holística – que assim como qualquer outra reação do organismo eles deveriam ser
entendidos como uma resposta do organismo de modo global. Ele mostrou que um reflexo não sofria
modificações relativas apenas ao estado geral do organismo, premissa esta já
aceita na teoria dos reflexos vigentes, mas sim que desde o início as reações
do organismo estão condicionadas pelo campo muito mais além do que o do
arco-reflexo. Goldstein opunha-se,
radicalmente, a visão que defendia que as perfomances do organismo seriam uma mera
composição de reflexos. Até mesmo as
ações instintivas também só poderiam ser compreendidas do ponto de vista
holístico, ou seja, como referentes ao organismo como um todo e de acordo com
as diversidades de cada situação.
Goldstein não descartava a importância da formação de reflexos
condicionados para o processo educativo da criança. Ele defendia que alguns hábitos (citando especificamente a
formação de hábitos relativos ao toalete) eram adquiridos através da formação
de reflexos condicionados. No entanto,
com o amadurecimento desta criança, haveria uma integração destes hábitos com
uma reflexão (insight) sobre estes, levando a execução de comportamentos
intencionais. A maturação dotaria então
o organismo da capacidade de lidar de modo satisfatório com situações
novas. Sendo assim, quanto mais madura
a criança menos ela apresentará comportamentos governados por instintos. Nesta linha de pensamento, Goldstein trouxe
considerações muito inovadoras sobre o conceito de drives*. Ele questionou o pensamento vigente que
pregava que o objetivo primeiro dos drives (impulsos) seria o de descarregar o
organismo de algum excesso de tensão.
Na realidade, Goldstein acreditava que esta tendência à descarga de tensão
como a prioridade do organismo é uma expressão de desarranjo, de mau
funcionamento do mesmo.
A lei que governaria o funcionamento dos organismos era, para a
Goldstein, a da tendência para atualizar-se.
Segundo suas palavras:
“ We can say that an organism is governed by the
tendency to actualize, as much as possible, its individual capacities, its
“nature” in the world. This nature is
what we call the psychosomatic constitution,... This tendency to actualize its
nature, to actualize “itself”, is the basic drive, the only drive by which the
life of the organism is determined.” (p. 162)
Podemos dizer que a Gestalt terapia foi construída sobre esta
crença, de que a lei que governa o funcionamento do ser humano é a da busca da
auto-atualização, salvo condições de extrema anormalidade. Fritz Perls iria pregar, na teoria da
abordagem gestáltica, que os indivíduos se auto-atualizariam dando prioridade
para a execução de ações que visassem a satisfação das necessidades emergentes
como figuras. Sendo alguma necessidade
satisfeita, esta deixaria de ser figural e outra necessidade emergeria. As complicações surgiriam, neste processo de
auto-atualização, quando não houvesse a possibilidade de satisfação de uma
necessidade básica. Se um indivíduo é
forçado a conviver com uma situação de restrição por muito tempo, o seu modo de
funcionamento é afetado e este passa a se comportar de um outro modo não
harmônico. Portanto o funcionamento não
harmônico é o resultante de situações de limite, onde se forma um padrão de
adaptação emergencial.
Goldstein já tinha dito que a noção de drives (impulsos) deveria
ser substituída pela idéia de que o organismo é dotado de potencialidades que
são capacidades da natureza do organismo de lidar com o meio de modo a estar
sempre buscando a auto-atualização.
Isto que Goldstein nomeou de capacidades naturais do organismo,
potencialidades, ele afirmou que as mesmas não são guiadas pela consciência
(apesar de ser influenciadas por esta) pois, mesmo em pacientes que
apresentavam distúrbios da consciência, haviam mecanismos de auto-regulação
organísmica presentes. Goldstein dizia
também que estas potencialidades também não são biologicamente determinadas,
mas sim só podem ser entendidas de modo holístico. Uma destas potencialidades apresenta-se como uma tendência do
indivíduo de completar ações incompletas, ou seja, em finalizar situações
inacabadas. Na Gestalt terapia diz-se
que uma necessidade impossível de ser satisfeita leva a formação de uma
situação inacabada, de uma gestalt aberta.
Que a busca do indivíduo é completar suas situações inacabadas levando
ao fechamento de gestalten.
Então, compreendendo o processo de busca de auto-atualização
como um processo holisticamente natural do organismo, como uma potencialidade
intrínseca do ser humano, Goldstein afirmava que quando o indivíduo apresentava
respostas antagônicas ou desarmônicas a este princípio é por que este estava
submetido a condições inadequadas de funcionamento. Neste sentido, Goldstein deu grande destaque ao papel da ansiedade
como um dos grandes desestabilizadores do funcionamento harmônico do
indivíduo. Ele dizia que no caso da
ansiedade as variações das respostas desarmônicas poderiam ser entendidas pelo
grau de severidade da experiência de perigo ou de dano ao qual o indivíduo
estava sendo submetido. A ansiedade é
uma experiência de ordem essencialmente subjetiva mas que interfere,
holisticamente, no todo da experiência do indivíduo (física, motor,
psicológica, intelectiva, etc.).
Uma discussão muito importante que Goldstein trouxe para o seu livro
inicial, foi sobre a distinção entre o fenômeno da ansiedade e do medo. Segundo este autor, esta discussão já se
fazia bastante presente na obra de vários filósofos, destacando o pensamento
fenomenológico existencial representando por Kierkgaard e Heidegger, que
consideravam que o fenômeno do medo dizia respeito ao medo de alguma coisa ou
situação específica, já a ansiedade não se relacionava com nenhum objeto
específico. Goldstein percebia grandes
semelhanças nas manifestações da ansiedade nos indivíduos normais com as
respostas catastróficas apresentadas por pacientes portadores de lesões
cerebrais quando confrontados com tarefas que não tinham condições de
resolver. Goldstein dizia que, na
realidade, não é correto afirmar que uma pessoa tem um sentimento de ansiedade
mas sim, que esta pessoa é a personificação do estado ansioso em um dado
momento. Ou seja, assim como as
respostas catastróficas dos pacientes lesionados, o fenômeno da ansiedade diz
respeito à experiência vivida por uma pessoa quando ela se defronta com sua
impossibilidade de reagir diante de demandas do meio. Ou seja, para se compreender o fenômeno da ansiedade é primordial
compreender também o meio específico desta situação.
O movimento
do sujeito em situações de medo é se livrar daquilo que lhe causa o medo,
podendo este medo se tornar ansiedade quando a pessoa se encontra
impossibilitada de fazer isto. No
entanto, na experiência da ansiedade o movimento do indivíduo é o de evitar a
situação, de escapar da mesma. Na
teoria da Gestalt Terapia a experiência da ansiedade é considerada como uma
constante na personalidade do neurótico, como um dos traços mais marcantes e
presentes. A ansiedade gera
imobilidade, uma postura de evitação das situações e de mau funcionamento,
portanto, do mecanismo holístico natural da auto-regulação organísmica.
Goldstein compreendia que no funcionamento do indivíduo normal
poderíamos verificar dois movimentos distintos na sua interação com o meio – um
que busca evitar a experiência da ansiedade através da criação de padrões de
conduta e de mecanismos esteriotipados para lidar com as situações, e outro,
igualmente importante, que leva o indivíduo a buscar novas experiências através
da expansão de suas possibilidades de ação e de reflexão. Neste sentido, Goldstein deu grande
importância ao papel da criatividade como um dos potenciais naturais do ser
humano que lhe possibilitam se auto-regular.
Ou seja, evitação de ansiedade e busca da novidade, da mudança, são movimentos
igualmente importantes para o processo de auto-regulação do sujeito. Na obra de Fritz Perls ele destacava a
importância do sujeito de saber lidar com as frustrações e não só com as
satisfações obtidas na relação com o meio.
Fica evidente que aquilo que Perls denominava frustração tinha uma
direta relação com a possibilidade do sujeito
de suportar um certo grau de ansiedade em nome de experimentar respostas
criativas e novas para o desenvolvimento?
Goldstein acreditava que nos bebês havia uma primazia de comportamentos
baseados me reflexos condicionados.
Durante o processo de desenvolvimento da criança começaria a se travar
uma luta entre as demandas do meio e as necessidades da criança, sendo esta
batalha fundamental para a criança começar a ensaiar novos modos de
funcionamento, tornando-se mais capaz de lidar com as demandas do meio de um
modo satisfatório. Este processo não
acontece precisamente de forma consciente.
A maturidade se expressa quando a criança vai substituindo ações que se
dão de modo não consciente por um número maior de ações que foram iniciadas de
modo consciente, através de um processo de elaboração mais acurado da
realidade.
Goldstein descrevia três padrões diferentes do comportamento do
indivíduo – o que ele nomeava perfomance estaria relacionado ao comportamento
consciente, as atitudes que estariam ligadas aos estados internos nos quais ele
incluía os sentimentos, humores e afetos e os processos fisiológicos que se
relacionariam aos eventos somáticos. A
estes três aspectos do comportamento corresponderiam os conceitos tão
conhecidos de mente, alma e corpo.
Goldstein destacava que é fundamental entender que esta distinção é
artificial, é um artifício para se compreender aspectos isolados do
comportamento total do indivíduo.
Algumas vezes estes modos do comportamento poderiam aparecer como
entidades de fato isoladas, mas seria um fenômeno compreensível pela lei de
figura-fundo, a qual possibilitaria explicar que haja, temporariamente, um
destaque para um dos campos da experiência mas estando os outros aspectos do comportamento
compondo o fundo da realidade global do homem.
Sendo assim, o pensamento só pode se dar de modo conjunto com uma
experiência emocional em um ser que experimenta um estado de corporeidade. Esta visão de Kurt Goldstein trouxe uma nova
possibilidade para o entendimento do dito inconsciente – àquilo que não está
presente na consciência em um determinado momento compõe um fundo também
constituinte do todo do ser global.
Esta noção de consciente e inconsciente como possibilidades
intercambiáveis do comportamento do homem se manifestar, também foi adotada
pela teoria da gestalt terapia.
O que Kurt Goldstein descreveu como o processo de
desenvolvimento anormal na criança, Fritz Perls iria nomear como a formação da
neurose no homem. Esta acontece quando
os impedimentos que atuam no relacionamento da criança com o meio são tão
drásticos que impossibilitam a criança de lidar com seu mecanismo de busca de
satisfação de necessidades. Na criança
o mecanismo de auto-regulação ainda não está plenamente desenvolvido, o que
facilita com que ela desenvolva comportamentos desarmônicos diante dos
impedimentos do meio. Este padrão de
funcionamento baseado em comportamentos desarmônicos também é uma das
características do modo do funcionamento neurótico que Fritz Perls descreveu na
teoria da personalidade da gestalt terapia.
A teoria organísmica de Kurt Goldstein já trazia algumas
críticas ao pensamento psicossomático da época. Este autor não acreditava na possibilidade de descrever processos
mentais como interferindo no corpo físico, ou vice-versa. Temos que levar em consideração o
funcionamento do organismo como um todo integrado. Podemos até considerar que o organismo é composto por partes
(membros, órgãos, etc.) mas o comportamento só pode ser visto como um modo de
representação deste organismo total.
Goldstein não negava o fato de que os indivíduos formem
determinados padrões de conduta, apresentem a preferência por manifestar
respostas repetitivas em determinadas circunstâncias, mas a cristalização excessiva
de um indivíduo em um repertório limitado de respostas é um modo desviante do
seu funcionamento saudável, o que Fritz Perls também considerou como um
mecanismo neurótico. Sendo assim,
Goldstein percebeu que era possível descrever tipos de pessoas por seus
comportamentos preferenciais, por algumas mais freqüentes no seu modo de lidar
com diversas situações,. Os comportamentos preferenciais são entendidos como
formados a partir da perfomance total da pessoa buscando maior conforto e
naturalidade nas suas ações. Golstein
destacava que, para se entender a razão de um comportamento preferencial ter se
tornado preferencial, precisa-se levar em consideração a situação total em que
este se formou. Além disto, quanto há
uma modificação em algum outro campo do organismo, há também uma modificação no
modo desta atitude preferencial se manifestar.
Podemos compreender os comportamentos preferenciais como comportamentos
que visam atingir uma auto-organização do sistema (organismo), uma “boa”
gestalt. No entanto, o que pode do
organismo em buscar os comportamentos mais adequados, para cada situação ser
considerado uma “boa” gestalt em um momento determinado, pode deixar de ser
diante de alguma modificação do campo que aconteça no organismo. Isto quer dizer que conceitos como o de
estabilidade e adequação organísmica são muito relativos e sempre dependentes
das condições momentâneas do sistema.
Diante do que foi argumentado acima, fica evidente que para a
teoria organísmica de Kurt Goldstein, o que se considera como equilíbrio em um
sistema é sempre visto de modo dinâmico.
Goldstein dizia – em se considerando a personalidade humana enquanto um
sistema em equilíbrio dinâmico, que : “
The better centered and integrated a personality is, the more definite and stable
are these “Gestalten”.” (p.291) As
leis da pregnância e da busca de
fechamento estudadas pelo gestaltismo são consideradas por Goldstein para
compreender esta tendência do organismo pela “boa” gestalt.
A teoria organísmica de Kurt Goldstein também se propunha a ser
inovadora pela rejeição ao modelo do paralelismo psico-físico, até então
bastante defendido nas ciências. Esta negação do modelo do paralelismo
psico-físico foi um dos pontos sobre o qual se edificou a teoria da Gestalt
terapia, inclusive no que tangem as críticas de Perls à psicanálise. Dentro desta perspectiva trazida pela teoria
organísmica, a distinção entre mente e corpo e tão inadequada quanto a uma
visão separatista de organismo e meio.
Goldstein já defendia que a auto-regulação organísmica se dá enquanto um
processo interacional, permanentes, onde há uma co-influenciação entre os
sistemas envolvidos.
Partindo do campo conceitual do gestaltismo, o conceito de que
os sistemas deveriam ser compreendidos dentro de uma visão topográfica foi
adotado por Kurt Goldstein. No conceito
de auto-atualização de Goldstein ele considerava a noção de equilíbrio dinâmico
topográfica do gestaltismo enquanto um processo de busca de equalização, por
parte do organismo, entre tensão e relaxamento. As forças que atuam sobre o organismo não podem ser consideradas
enquanto forças internas ou externas, mas sim como forças sempre
contextualizadas no campo interacional. Goldstein destacou que a complexidade
do comportamento humano está no fato de que este é, ao mesmo tempo que
holisticamente guiado, também apto a
exercer uma ação voluntária pela
capacidade de abstração do homem.
Este modo de funcionamento do homem que tem o poder da abstração lhe
dota da possibilidade de assumir respostas isoladas, não holisticamente
guiadas, dependendo de circustâncias específicas.
Uma das grandes críticas feitas ao modelo organísmico é a de que
estaria comprometido com uma visão mecanicista. Este destaque que Goldstein dá a singularidade do modo de
funcionamento auto-regulativo no homem é uma das formas de se resguardar deste
modelo mecanicista, dotando o ser humano de uma autonomia maior em relação aos
seus processos de busca de auto-organização diante de sua capacidade de
abstrair. A capacidade de abstração e de
simbolização são duas características marcantes para o entendimento dos
processos auto-regulativos no homem.
Goldstein dizia que os símbolos também possuem as características de uma
“gestalt”. O pensamento holístico
também se faz presente para o entendimento dos símbolos no homem, mostrando que
os mesmo também são relacionados a todos os aspectos do sistema e não meras
representações mentais.
A obra de Kurt Goldstein foi também extremamente rica nos
questionamentos que trouxe sobre os conceitos de normalidade, saúde, doença,
anomalias, etc. Dentre deste campo conceitual Goldstein também trouxe
propostas, bastante relevantes, sobre outras formas de se considerar estes
conceitos que não as até então utilizadas pelo pensamento atomista/causalista,
mas sim coerentes com o pensamento holístico.
Grande parte dos estudos na área biológica trataram da questão da
normalidade de um ponto de vista da apresentação de comportamentos constantes,
padrões constantes de conduta, que fossem estatisticamente coerentes com aquilo
que se adequasse ao modo de funcionamento da espécie humana, de um modo
geral. Goldstein abre a discussão
apontado que o pensamento estatístico não se propõe a tratar da individualidade
de cada pessoa considerada. Para se
expandir este questionamento sobre o que seria anormalidade devemos ter em
conta outra discussão, o que seria então anormalidade ou doença. Goldstein parte do ponto de visto de Karl
Jasper que defendia que a doença é muito mais um conceito de valor, atrelado ao
julgamento sócio-cultural, do que propriamente de um julgamento médico.
Goldstein concorda com esta perspectiva e defende que, holisticamente
pensando, é muito mais importante se tratar do fenômeno do que é estar doente
do que da doença propriamente dita. Goldstein, já defendia que para se
considerar um padrão de normalidade deve-se ter em consideração o indivíduo,
por si próprio, como sua medida. Então,
dentre deste critério holístico-organísmico, o que é pertinente para se considerar
que alguém está doente? Goldstein apontou:
“ And likewise the patient himself experiences disease
primarily as a básic change of his attitude toward the environment, as
uncertainty and anxiety – the subjective manifestations of catastrophic
conditions.” (p.328)
Para se entender a doença é necessário partir de uma concepção
da natureza daquele indivíduo. A doença é vista como um distúrbio no processo
vital do homem (auto-regulação organísmica) diante de uma situação que o coloca
em risco. Qualquer forma de perigo ao
qual um sujeito é submetido, sempre alterará o seu modo de funcionamento e sua
maneira de lidar com seus potenciais naturais auto-regulativos. Goldstein considerava perigo, risco, ameaça,
tanto àquilo que diz respeito aos distúrbios objetivos, quanto às experiências
subjetivas. Para que haja uma
reabilitação deste estar doente é imprescindível que um novo modo de
funcionamento, individual, surja permitindo uma adequação as restrições
experimentadas. Então, o bem estar se
apresenta como um novo modo harmônico de funcionamento, dado que o antes
experimentado já não é mais viável.
Deste modo, podemos pensar que a possibilidade de mudar surge como uma
habilidade do indivíduo de restaurar seu bem estar. Apenas em condições patológicas é que a tendência em tentar
preservar um estado inalterado de comportamento se manifesta. É importante ressaltar que quando Goldstein
fala da mudança no organismo, ele considera que qualquer mudança nesta unidade
é consoante com um mudança que também ocorre no meio. A necessidade de um olhar individual sobre as alterações
apresentadas por uma pessoa doente não significa a defesa de um olhar
individualista pois, este sujeito, é um ser social que manifesta uma doença não
desvinculadamente de sua experiência global.
Referências
Bibliográficas:
Goldstein,
K. La natureza Humana a La Luz de la
Psicopatologia. Buenos Aires: Paidos, 1961.
Goldstein, K. The
Organism. Nova York: Zone Books,
1995.
[i] *
Goldstein definia perfomances como as ações concretas pelas quais o organismo
se auto-atualiza.