CAMINHO DO CREDENCIAMENTO: ABRINDO A TRILHA...
A
trajetória da Gestalt-terapia em Santa Catarina coincide com o processo de
construção de um trabalho clínico e de ensino dessa abordagem que culminou na
criação do Instituto Gestalten, em 2001, na cidade de Florianópolis. Já naquele
ano a Gestalt-terapia estava estabelecida no Estado como uma abordagem clínica
respeitada e muito procurada pelos psicólogos catarinenses. O curso de formação
em Gestalt-terapia oferecido pelo Instituto Gestalten já possuía credibilidade
suficiente para garantir a formação de novas turmas a cada ano. Já podíamos
pensar em tratá-lo como uma especialidade clínica, porém não queríamos nos
submeter ao perfil eminentemente acadêmico do MEC.
As
resoluções 014/00 e 007/01 do Conselho Federal de Psicologia, instituindo o
título profissional de Especialista em Psicologia e aprovando as normas de
credenciamento de cursos com finalidade de concessão do título de especialista,
ofereceram algo pertinente aos nossos propósitos, precisamente: a regulamentação
de uma formação pensada a partir das práticas profissionais e da singularidade
das diversas orientações teóricas em psicologia. Não perderíamos nossas
características de um ensino gestáltico, tão peculiar à nossa abordagem, e
poderíamos oferecer aos nossos alunos um registro de especialista reconhecido
pelos psicólogos e pela sociedade.
Ao
nos interarmos da resolução iniciamos um processo de crescimento, reformulação
e apropriação de nossa história que nos colocou em muitos momentos diante de questões
polêmicas, as quais passo a relatar como uma contribuição aos colegas que se
ocupam de ensinar a Gestalt-terapia.
A
primeira delas e, talvez, a mais polêmica se refere à polarização entre ensino
acadêmico (meramente teórico) e “treinamento” da prática clínica. Participamos
de muitas discussões a respeito, afinal qual a necessidade de trinta por cento
de mestres e doutores num curso que prepara para a prática clínica? Um
psicoterapeuta precisa de uma formação acadêmica dita “científica” para estabelecer
uma relação terapêutica? Mas esta era e continua sendo a condição para se
credenciar cursos de formação junto ao Conselho Federal de Psicologia. Frente
ao que nos perguntávamos: quem estabeleceu estas regras? A partir de que
prática? Acadêmica ou clínica?
Sinceramente,
não sei se encontramos a resposta, porém, como alguém que se ocupa
integralmente da Gestalt-terapia e da Fenomenologia, vou responder a partir de
meus vividos, melhor dizendo, daquilo que me inquietava no final dos anos 90.
Apesar de exercer a lida terapêutica há quase 20 anos e de ter ido buscar
conhecer as melhores referências na nossa abordagem, eu queria mais. Queria
pensar, repensar, integrar partes às vezes desconexas num novo todo, ou talvez
descobrir um novo todo ou recriá-lo a partir de minha experiência clínica.
Voltei para a universidade, achei que lá eu encontraria os meios de transformar
esta inquietação em uma criação. Poderia ter feito outra coisa, me tornado um
auto-didata talvez. Mas, por sorte, não me enganei. Hoje, depois do mestrado
concluído, sou diferente como ensinante de Gestalt-terapia e também como
gestat-terapeuta. É claro, não atribuo isto à academia, nem às aulas que tive
ou aos livros que li, mas à experiência de recriação de velhos modos de ver a
teoria e a prática retomando um fundo consistente, no meu caso, a
Fenomenologia. Por esta razão passei a considerar a experiência acadêmica, mais
precisamente de pós-graduação, não suficiente, mas um complemento essencial na
formação do “coordenador de formações em psicoterapia”; e isto não significa
transformar o curso em pura teorização, mesmo porque, se há uma teoria
gestáltica ou uma filosofia da gestalt, essa nos mostra que toda teoria é
apenas uma objetivação dos vividos essenciais, de nossas experiências sensíveis,
motóricas e linguageiras. Não há necessidade de negarmos a teoria para sermos
gestálticos ou fenomenológicos, apenas temos que entender qual é o seu lugar em
nossa abordagem.
Portanto
tal polêmica não chegou a ser um obstáculo no processo de credenciamento de
nosso curso. Pudemos respeitar este requisito sem nos fazer refém dele.
Outra
polêmica que enfrentamos tratou da caracterização do formato das tais
monografias. No entender dos avaliadores, elas deveriam caracterizar uma peça
estritamente acadêmica. Nesse sentido, elas não poderiam incluir descrições
referentes às experiências “subjetivas” do próprio autor, não poderiam falar de
sentimentos sem o devido rigor científico. Aqui foi necessário pontuar que a
tradição de dissertar sobre as próprias vivências não é um descaso pela teoria,
mas a adesão a um estilo fenomenológico de reflexão. Por conta disso, tivemos
de mostrar, aos avaliadores, que o reconhecimento do primado das vivências é
não só um postulado fundamental de uma certa filosofia fenomenológica, como
também a razão pela qual os fundadores da Gestalt-terapia elegeram tal
filosofia como modelo formal – e apenas isso - da nossa abordagem
psicoterapêutica. Assim sendo, nossos registros teóricos não poderiam ignorar
nossos fundamentos, não poderiam partir de especulações. Isso significaria:
escrever sobre o que fazemos de uma forma contraditória ao que fazemos.
Portanto abolimos objetivos gerais e específicos, tabelas, linguagem impessoal
e todos os expedientes concebidos a partir do “pré-juízo” que afirma ser
possível explicarmos nossa existência a partir de um modelo consistente. Em
contrapartida desse prejuízo, definimos a monografia como a elaboração formal
de uma determinada vivência, seja ela pessoal, clínica ou social, em favor da
sedimentação de um modo gestáltico de pensar a existência. Para tanto, é
exigido do aluno o reconhecimento e a crítica dos prejuízos clássicos em torno
da vivência estudada, o emprego da literatura gestáltica na descrição da
vivência, bem como a respectiva crítica dessa literatura.
Prática
clínica com “supervisão relatada” verus prática clínica com “supervisão presencial”. Eis aqui outro ponto
polêmico. A resolução só considera prática clínica (total de 120 horas
aproximadamente) apenas aquela realizada em atendimentos “reais”, seja em
clínica social ou privada, desde que supervisionada via relato do terapeuta.
Esta prática é realmente importante porém é reconhecido em nossa forma de
ensinar a Gestalt-terapia o que alguns chamam de tríades ou quartetos, onde um
aluno realiza um “episódio de contato terapêutico real” e é supervisionado in
loco. Todos que passamos por isso ou que supervisionamos desta forma
sabemos da eficácia deste trabalho. Porém isto não tem o valor de prática
clínica para fins de credenciamento. Não abrindo mão desta metodologia,
acrescentamos a outra modalidade e sem dúvida o curso enriqueceu muito, pois
acabamos desenvolvendo uma técnica gestáltica de supervisão relatada.
Outra
questão significativa nesse processo de credenciamento de nosso curso foi a
limitação do público alvo. O Conselho Federal de Psicologia não permitiu que
admitíssemos alunos não psicólogos em nosso curso (inclusive formandos, como
era nossa prática anterior). Admiti-los implicaria ensinar técnicas
psicológicas a não-psicólogos e, conseqüentemente, infringir o código de ética
da categoria. Trata-se de um assunto difícil, pois, em primeiro lugar: até que
ponto nós podemos considerar a Gestalt-terapia uma empresa exclusivamente
psicológica? Para dar conta dessa dificuldade, respaldamo-nos na história de
nossa comunidade aqui no Brasil, que há muito faz a distinção entre as diversas
“clínicas” da Gestalt-terapia e a Abordagem Gestáltica (a qual inclui outras
formas de intervenção que não as clínicas). Nossos congressos nacionais distinguem,
pelo menos formalmente, essas duas modalidades, razão pela qual julgamos
pertinente aplicar tal distinção à questão em tela. Nosso entendimento foi o de
que o curso de especialização que propomos destina-se a formar clínicos e não
se ocupa de outras formas de intervenção gestáltica. Por isso, não obstante não
acreditarmos que a postura gestáltica possa ser reduzida a uma categoria ou
prática profissional, o certo é que a Psicologia Ciência e Profissão, melhor do
que qualquer outra organização em nosso país, luta por preservar as
características específicas da intervenção clínica junto a fenômenos psíquicos,
oferecendo respaldo legal a esse tipo de prática, bem como a quem a ele se
submete. A criação das especializações
e o reconhecimento da existência de uma especialidade clínica são prova disso.
Mais ainda, o Conselho Federal de Psicologia tem promovido uma discussão ampla
sobre a definição e a regulamentação da prática analítica e psicoterapêutica em
nosso país. Razão pela qual, julgamos adequada a vinculação de nosso curso à
modalidade de curso de especialização chancelado pela categoria profissional
dos psicólogos. Conseqüentemente, julgamos pertinente acatar as exigências
estabelecidas por essa categoria (como a da não aceitação de não-psicólogos),
na certeza de que isso não implica, de forma alguma, uma limitação de nossa
liberdade para praticar e discutir nossa prática clínica e, muito
especialmente, nossa abordagem.
Vivemos o processo de credenciamento como um
processo organizador de nosso curso, a avaliação a que nos submetemos checou as
exigências da resolução e foi rigorosa quanto à qualidade e a efetividade das
ações propostas no projeto entrevistando professores e alunos. Não perdemos
nenhuma das características fundamentais que fizeram de nosso curso de formação
um curso respeitado e procurado pelos psicólogos mesmo antes do credenciamento.
Em setembro de 2004, nos termos do processo administrativo CFP nº 034/03, nosso
curso foi credenciado, o primeiro curso em Gestalt-terapia do Brasil e o
primeiro curso de Especialização credenciado pelo Conselho Federal de
Psicologia em Santa Catarina. Sem dúvida todos ganhamos, nós porque crescemos
neste processo, nossos alunos porque hoje além de passar pela “trans-formação”
em gestal-terapeutas têm sua abordagem reconhecida como especialidade clínica e
trazem em seu currículo um título de especialista em Psicologia Clínica. Este
diferencial tem sido considerado muito importante pelos psicólogos que procuram
um curso de formação. Estamos falando de algo que conta no mercado de trabalho,
que amplia possibilidades, que gera credibilidade, que nos motiva a crescer. Só
desta forma vale a pena.
REFERÊNCIAS
Resolução
CFP nº 014/00 (Conselho Federal de Psicologia), in: www.pol.org.br
Resolução
CFP nº 010/00 (Conselho Federal de Psicologia), in: www.pol.org.br
Resolução
CFP nº 007/01 (Conselho Federal de Psicologia), in: www.pol.org.br
Processo
Credenciamento de Curso de Especialização CFP nº 034/03
A autora é mestre em Filosofia,
especialista em Psicologia Clínica e gestalt-terapeuta desde 1985. Diretora do
Instituto Gestalten em Florianópolis – SC, onde desenvolve a clínica privada
com adultos e casais e ministra cursos de Especialização em Gestalt-terapia,
atividade esta exercida desde 1989. É autora de “Dialogando com a
Gestalt-terapia”, Programa de formação continuada em Psicologia, Módulo 7, Revista
Psicologia Brasil, 2004, “Uma psicoterapia do entre”, Jornal do CRP-SC –
Ano IV, nº 40. Co-autora dos artigos “Gênese fenomenológica da noção de
gestalt” e “Self e
temporalidade”, ambos publicados na Revista do X Encontro Goiano da
Abordagem Gestáltica, 10, Goiânia, 2004. Revisou e prefaciou a edição
brasileira do livro Gestalt Terapia Integrada de Erving e Mirian Polster
(Summus, 2000).
[1] Psicóloga clínica, gestalt terapeuta, mestranda em filosofia, diretora do Instituto Gestalten, Florianópolis – SC, mullergranzotto@gestalten.com.br